Diversidade Socioambiental


Por: EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO* Antropólogo do Museu Nacional (UFRJ) em
 Almanaque Brasil Socioambiental


A diversidade das formas de vida na Terra (e sabe-se lá mais onde) é consubstancial à vida enquanto forma da matéria. Essa diversidade é o movimento mesmo da vida enquanto informação, tomada deforma que interioriza a diferença – as variações de potencial existentes em um universo constituído pela distribuição heterogênea de matéria/energia – para produzir mais diferença, isto é, mais informação.

A vida, nesse sentido, é uma exponenciação – um redobramento ou multiplicação da diferença por si mesma. Isso se aplica igualmente à vida humana.


A diversidade de modos de vida humanos é uma diversidade dos modos de nos relacionarmos com a vida em geral, e com as inumeráveis formas singulares de vida que ocupam (informam) todos os nichos possíveis do mundo que conhecemos (e sabe-se lá de quantos outros).


A diversidade humana, social ou cultural, é uma manifestação da diversidade ambiental, ou natural – é a ela que nos constitui como uma forma singular da vida, nosso modo próprio de interiorizar a diversidade “externa” (ambiental) e assim reproduzi-la. Por isso a presente crise ambiental é, para os humanos, uma crise cultural, crise de diversidade, ameaça à vida humana.

A crise se instala quando se perde de vista o caráter relativo, reversível e recursivo da distinção entre ambiente e sociedade. 

O poeta e pensador Paul Valéry constatava sombrio, pouco depois da Primeira Guerra Mundial, que “nós, civilizações [européias], sabemos agora que somos mortais”. Neste começo algocrepuscular do presente século, passamos a saber que, além de mortais, “nós, civilizações”, somos mortí-feras, e mortíferas não apenas para nós, mas para um número incalculável de espécies vivas – inclusive para a nossa.

Nós, humanos modernos, filhos das civilizações mortais de Valéry, parece que ainda não s esquecemos que pertencemos à vida, e não o contrário. E olhem que já soubemos disso. Algumas civilizações sabem disso; muitas outras, algumas das quais matamos, sabiam disso. Mas hoje, começa a ficar urgentemente claro até para “nós mesmos” que é do supremo e urgente interesse da espécie humana abandonar uma perspectiva antropocêntrica.


Se a exigência parece paradoxal, é porque ela o é; tal é nossa presente condição. Mas nem todo paradoxo implica uma impossibilidade; os rumos que nossa civilização tomou nada têm de necessário, do ponto de vista da espécie humana.

É possível mudar de rumo, ainda que isso signifique – está na hora de encararmos a chamada realidade – mudar muito daquilo que muitos considerariam como a essência mesma da nossa civilização.


 Nosso curioso modo de dizer “nós”, por exemplo, excluindo-nos dos outros, isto é, do “ambiente”.

O que chamamos ambiente é uma sociedade de sociedades, como o que chamamos sociedade é um ambiente de ambientes. O que é “ambiente” para uma dada sociedade será “sociedade” para um outro ambiente, e assim por diante. Ecologia é sociologia, e reciprocamente.

Como dizia o grande sociólogo Gabriel Tarde, “toda coisa é uma sociedade, todo fenômeno é um fato social”.


Toda diversidade é ao mesmo tempo um fato social e um fato ambiental; impossível separá-los sem que não nos despenhemos no abismo assim aberto, ao destruirmos nossas próprias condições de existência.

A diversidade é, portanto, um valor superior para a vida. A vida vive da diferença; toda vez que uma diferença se anula, há morte. “Existir é diferir”, continuava Tarde; “é a diversidade, não a unidade, que está no coração das coisas”.

Dessa forma, é a própria idéia de valor, o valor de todo valor, por assim dizer – o coração da realidade –, que supõe e afirma a diversidade.


É verdade que a morte de uns é a vida de outros e que, neste sentido, as diferenças que formam a condição irredutível do mundo jamais se anulam realmente, apenas “mudam de lugar” (o chamado princípio de conservação da energia). Mas nem todo lugar é igualmente bom para nós, humanos.

Nem todo lugar tem o mesmo valor. (Ecologia é isso: avaliação do lugar).

Diversidade socioambiental é a condição de uma vida rica, uma vida capaz de articular o maior número possível de diferenças significativas.


 Vida, valor e sentido, finalmente, são os três nomes, ou efeitos, da diferença. Falar em diversidade socioambiental não é fazer uma constatação, mas um chamado à luta.

Não se trata de celebrar ou lamentar uma diversidade passada, residualmente mantida ou irrecuperavelmente perdida – uma diferença diferenciada, estática, sedimentada em identidades separadas e prontas para consumo.


Sabemos como a diversidade socioambiental, tomada como mera variedade no mundo, pode ser usada para substituir as verdadeiras diferenças por diferenças factícias, por distinções narcisistas que repetem ao infinito a morna identidade dos consumidores, tanto mais parecidos entre si quanto mais diferentes se imaginam. Mas a bandeira da diversidade real aponta para o futuro, para uma diferença diferenciante, um devir onde não é apenas o plural (a variedade sob o comando de uma unidade superior), mas o múltiplo (a variação complexa que não se deixa totalizar por uma transcendência) que está em jogo.

A diversidade socioambiental é o que se quer produzir, promover, favorecer. Não é uma questão de preservação, mas de perseverança.
Não é um problema de controle tecnológico, mas de autodeterminação política. É um problema, em suma, de mudar de vida, porque em outro e muito mais grave sentido, vida, só há uma. Mudar de vida – mudar de modo de vida; mudar de “sistema”.


O capitalismo é um sistema político-religioso cujo princípio consiste em tirar das pessoas o que elas têm e fazê-las desejar o que não têm– sempre.

Outro nome desse princípio é “desenvolvimento econômico”. Estamos aqui em plena teologia da falta e da queda, da insaciabilidade infinita do desejo humano perante os meios materiais finitos desatisfazê-los.

A noção recente de “desenvolvimento sustentável” é, no fundo, apenas um modo de tornar sustentável a noção de desenvolvimento, a qual já deveria ter ido para a usina de reciclagem das idéias.


Contra o desenvolvimento sustentável, é preciso fazer valer o conceito de suficiência antropológica. Não se trata de autosuficiência, visto que a vida é diferença, relação com a alteridade, abertura para o exteriorem vista da interiorização perpétua, sempre inacabada, desse exterior (o fora nos mantém, somos o fora, diferimos de nós mesmos a cada instante). Mas se trata sim de autodeterminação, de capacidade de determinar para si mesmo, como projeto político, uma vida que seja boa o bastante.

O desenvolvimento é sempre suposto ser uma necessidade antropológica, exatamente porque ele supõe uma antropologia da necessidade: a infinitude subjetiva do homem – seus desejos insaciáveis – e min solúvel contradição com a finitude objetiva do ambiente – a escassez dos recursos.


Estamos no coração da economia teológica do Ocidente, como tão bem mostrou Marshal Sahlins; na verdade, na origem de nossa teologia econômica do “desenvolvimento”. Mas essa concepção econômico-teológica da necessidade é, em todos os sentidos, desnecessária. O que precisamos é de um conceito de suficiência, não de necessidade.


Contra a teologia da necessidade, uma pragmática da suficiência. Contra a aceleração do crescimento, a aceleração das transferências de riqueza, ou circulação livre das diferenças; contra a teoria economicista do desenvolvimento necessário, a cosmo-pragmática da ação suficiente.

A suficiência é uma relação mais livre que a necessidade. As condições suficientes são maiores – mais diversas – que as condições necessárias. Contra o mundo do “tudo é necessário, nada é suficiente”, a favor de um mundo onde “muito pouco é necessário, quase tudo é suficiente”. Quem sabe assim tenhamos um mundo a deixar para nossos filhos.


 


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