O tema foi abordado na NOTA TÉCNICA nº. 02/2023 elaborada pelo Ministério Público do Pará
Em conclusão, observando a demanda que foi direcionada ao Centro de Apoio Operacional de Direitos Humanos, em análise conjunta com o Centro de Apoio Operacional de Meio Ambiente, acerca das salvaguardas aos povos e comunidades tradicionais no contexto do Mercado Voluntário de Carbono, e tendo em vista a identificação de que as principais questões hoje enfrentadas pelo Ministério Público dizem respeito a negociações em trâmite ou já formalizadas envolvendo empresas e comunidades tradicionais, com incidência em terras públicas sem autorização do órgão público gestor, nas quais podem ocorrer cláusulas abusivas ou ilegais, além da ausência de observância ao direito à Consulta Livre, Prévia e Informada, e problemas relativos à ausência de transparência, bem como tendo em vista a negociação de créditos de carbono em terras públicas, ilegalmente apropriadas por terceiros, em aproximação ao conceito socialmente construído de “grilagem de terras”, articulamos as seguintes conclusões:
1. São salvaguardas aos direitos de povos e comunidades tradicionais no âmbito do mercado de carbono: o direito de proteção ao território; a Consulta Livre, Prévia e Informada, a ser realizada pelo Poder Público; a repartição de benefícios; a avaliação de impactos sociais e ambientais; a incidência de um regime de direito administrativo com o acompanhamento estatal obrigatório, a depender do regime fundiário vigente, sempre resguardados os modos de vida tradicionais;
2. O contrato relativo a direitos incidentes sobre créditos de carbono tem natureza de interesse público, e especificamente quando incidente em florestas públicas, deve ter a necessária intervenção estatal por tratar-se de contrato de natureza administrativa;
3. Sempre que incidente em florestas de domínio público, os contratos relativos a direitos sobre créditos de carbono devem zelar pelo reconhecimento da titularidade pública e afastar contratos nos quais exista a configuração de atos de apropriação indevida de bens públicos (grilagem de terras);
4. Devem ser adotadas as providências necessárias para o cancelamento de Cadastros Ambientais Rurais incidentes em bens públicos afetados que estejam se servindo à certificação ou negociações incidentes sobre carbono, a fim de evitar a realização de negócios jurídicos em prejuízo da proteção dos bens públicos e direitos de povos e comunidades tradicionais;
5. Os contratos relativos a direitos incidentes sobre o carbono se configuram em direitos relativos a serviços ambientais, logo, devem, no mínimo, observar os ditames da Lei dos Serviços Ambientais, dentre os quais se destacam: a obrigação de averbação do contrato no Registro Público do Imóvel sobre o qual incide e CLPI. Isto porque, sobre os contratos de créditos de carbono, incide a obrigação de publicidade e especialidade decorrente do direito registral, razão pela qual é obrigatória a averbação do contrato no registro público de imóveis conforme disposto na Lei n.º 6.015/73 (art. 167, inc. I, “45”);
6. Deve existir a obrigação de criação por parte das empresas certificadoras ou beneficiárias de crédito de carbono de auditorias que comprovem o dever de devida diligência na proteção de direitos humanos, bem como devem ser criadas ouvidorias externas para o encaminhamento de denúncias;
7. O Estado tem a obrigação de proceder à Consulta Livre Prévia e Informada, não podendo delegar aos particulares esta tarefa, bem como devem ser adotadas providências para anulação de atos privados ou administrativos derivados de processos de consulta realizados em ofensa a este direito humano. Neste sentido, devem ser respeitadas as instâncias próprias de deliberação, como também as regras estabelecidas nos Protocolos Comunitários (quando houver), garantindo em todas as hipóteses a participação do Poder Público responsável pela dominialidade do território tradicional, órgão público de gestão fundiária, Ministério Público Estadual e Federal. Ressalta-se que as reuniões/assembleias não podem se limitar a manifestação da direção das entidades legais representativas das populações tradicionais, devendo-se assegurar o direito das posições contrárias à realização dos contratos;
8. A realização da Consulta Livre, Prévia e Informada deve ocorrer em qualquer condição e não pode ser suprimida pela aprovação da Assembleia Geral ou deliberação isolada da Diretoria de uma Associação, tendo em vista a natureza coletiva do bem e a afetação aos uso e usufruto dos bens ambientais existentes nos territórios tradicionais, garantindo-se, inclusive, o direito da minoria em não realizar o contrato;
9. Os projetos incidentes em áreas públicas devem ser selecionados por mecanismos públicos, bem como devem ser asseguradas aos povos e comunidades tradicionais o direito à ampla participação neste ato. Segundo os princípios de Direito Administrativo, por tratar-se de bem público, seu uso por terceiros deve ser precedido de mecanismos licitatórios, ou fundamentada sua dispensa ou inexigibilidade;
10. Por se tratarem de contratos e transações de natureza ambiental e incidentes sobre direitos humanos, as certificadoras e desenvolvedoras (empresas que negociam e firmam os contratos com comunidades e viabilizam a disponibilização dos crédito no mercado) devem observar a obrigação de amplo acesso à informação de natureza ambiental. Ademais, observa-se que, na hipótese de incidência sobre direitos públicos, deve ser atendida a obrigação de prestação de informações de modo ativo, nos termos do art. 9o da Lei de Acesso à Informação.
11. Para as atividades especificamente desenvolvidas no Estado do Pará, deve ser observada a Política Estadual sobre Mudanças Climáticas do Pará (PEMC/PA), que prevê em seu art. 2º os princípios do acesso à informação; a transparência e efetiva disponibilização de dados e fatos ambientais; a obrigação de ação governamental prevendo o acompanhamento, planejamento e fiscalização da qualidade ambiental e do uso sustentável dos recursos naturais pelo Estado, para a manutenção do equilíbrio ecológico. Ressalta-se o direito à participação de todos os interessados, por meio da cooperação entre Poder Público e coletividade, na tomada de decisões acerca da proteção do meio ambiente, assim como o dever da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS) de coordenar a elaboração e a atualização, bem como dar ampla publicidade ao inventário de emissões antrópicas por fontes e de remoções por sumidouros de gases de efeito estufa, de todas as atividades relevantes existentes no Estado do Pará, que deve incluir informações sobre as medidas de mitigação e de adaptação adotadas no Estado (artigo 21, inciso I);
12. A dominialidade e o regime fundiário do bem não podem excluir o legítimo direito dos povos e comunidades tradicionais à fruição da repartição de benefícios em reconhecimento ao papel de guardiões da biodiversidade por eles desempenhados, ainda que imóvel seja de domínio público e sua utilização deva se submeter ao regime contratual público, com todas as cautelas para a proteção do patrimônio público. Todavia, incidindo tal imóvel sobre território tradicional, a repartição de benefícios deve obrigatoriamente ser feita a partir do respeito e autonomia dos povos e comunidades tradicionais;
13. Inclusão de cláusula de flexibilização nos contratos de modo a permitir revisão a qualquer tempo por demanda justificada dos PCTs, parte vulnerável na relação contratual, que deveria bem por isso ter garantias contratuais excepcionais de execução e revisões, com uma espécie de seguro socioambiental, seguros de fiança bancária e/ou outras garantias, visando a segurança jurídica e equilíbrio econômico-financeiro dos contratos;
14. Condicionantes que garantam a comprovação da implementação prévia de instrumentos de pagamento por serviços ambientais de conservação, de compensação ambiental (art. 36 da Lei do SNUC) e de política de repartição de benefícios por qualquer acesso a conhecimentos tradicionais ou a recursos naturais de qualquer território tradicional ou de qualquer UC na área da bacia hidrográfica do empreendimento;
15. Caso o contrato envolva negócio com uso de recursos hídricos nas áreas de influência do projeto ou do empreendimento, que haja o devido e prévio investimento financeiro em UCs da respectiva bacia (artigo 47 da Lei do SNUC).

